quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Bocage e a Revolução

O poeta Bocage fez um poema sobre a morte da Rainha Maria Antonieta, a lamenta-la como barbara. Retranscreve-se aqui.


Guilhotinada aos 16 de Outubro de 1793


Seculo horrendo aos seculos vindouros,

Que ias inutilmente acumulando

Das artes, das sciencias os thesouros:


Seculo enorme, seculo nefando,

Em que das fauces do espantoso Averno

Dragões sobre dragões veem rebentando:


Marcado foste pela mão do Eterno

Para estragar nos corações corruptos

O dom da humanidade, amavel, terno.


Que fataes produções, que azedos fructos

Dás aos campos de Galia abominados,

Nunca de sangue, ou lagrimas enxutos!


Que horrores, pelas Furias propagados,

Mais e mais esses ares enevoam,

Da gloria longo tempo iluminados!


Crimes soltos do Inferno a Terra atroam,

E em torno aos cadafalsos lutuosos

Da sedenta vingança os gritos soam.


Turba feroz de monstros pavorosos

O ferro de impias leis, bramindo, encrava

Em mil, que a seu sabor faz criminosos.


A brilhante nação, que blasonava

D'exemplo das nações, o throno abate,

E de um senado atroz se torna escrava.


Por mais que o sangue em ondas se desate,

Nada, nada lhe acorda o sentimento,

Que as insanas paixões prende, ou rebate;


Vae grassando o furor sanguinolento,

Lavra de peito em peito, e de alma em alma,

Qual rubra labareda exposta ao vento:


Não cede, não repousa, não se acalma,

E a funesta, insolente liberdades

Ergue no punho audaz sanguinea palma.


Barbaro tempo! Abominosa edade,

Às outras eras pelos Fados presa

Para labeu, e horror da humanidade!


Flagelos da virtude, e da grandeza,

Reus do infame e sacrilego atentado

De que treme a Razão, e a Natureza!


Não bastava esse crime?... Inda o danado

Espirito, que em vós está fervendo,

A novos parricidios corre, ousado?...


Justos Ceus! Que espectaculo tremendo!

Que imagens de terror; que horrivel cena

Vou na assombrada ideia revolvendo!


Que victima gentil, muda, e serena

Brilha entre espesso, detestavel bando,

Nas sombras da calumnia, que a condena!


Orna a paz da inocencia o gesto brando,

E os olhos, cujas graças encantaram,

Se volvem para o ceu de quando em quando:


As mãos, aquellas mãos, que semearam

Dadivas, premios, e na mole infancia

Com os ceptros auriferos brincaram.


Ludibrio do furor, e da arrogancia

Sofrem prisões servis, que apenas sente

O assombro da belleza, e da constancia.


Oh justiça dos ceus! Oh mundo! Oh gente!

Vinde, acudi, correi, salvai da morte

A malfadada victima inocente!...


Mas ai! Não há piedade, que reporte

A raiva dos terriveis assassinos;

Soou da tirania o duro corte.


Ja cerrados estais, olhos divinos;

Ja voando cumpriste, alma formosa,

A ferrea lei de asperrimos destinos.


Do rei dos reis na corte luminosa

Revês o pio heroe, por nós chorado,

Que de excelsa virtude os lauros goza.


Na mente vos observo: ei-lo a teu lado

Implorando ao Senhor, que os maus flagela,

Perdão para o seu povo alucinado.


Despido o véu corporeo, ó alma bella,

No seio de imortal felicidade,

Só sentes não voar mais cedo a ella.


Enquanto aos monstros de horrida maldade

Murmura a seu pesar no peito iroso

A voz da vingadora Eternidade.


Desfructa suma gloria, ó par dictoso,

Logra em perpetua paz jubilo imenso,

Que o mundo consternado, e respeitoso.


Te aponta as aras, te dispõe o incenso.

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